Wednesday, May 19, 2010

O SNS entrou em colapso

As organizações não entram em colapso só porque deixam de pagar ou sequer de actuar. Às vezes, as organizações dão evidentes sinais de colapso, apesar de mostrarem sinais de vida. Isto significa o fim de um mito, a existência de um serviço de saúde permamente, disponível, tendencialmente gratuito e para todos:
  • A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) intimou dois hospitais públicos a pagarem a meias uma operação a um descolamento da retina que uma doente fez no hospital privado Cuf Descobertas (Lisboa), depois de esta não ter sido atendida de imediato nas duas unidades, por ser véspera de fim-de-ano.

Isto é absolutamente inacreditável. Mas, o que a seguir registamos, é sinal de um completo estado de irresponsabilidade por parte de toda a estrutura do Ministério da Saúde, desde a pediatra Ana Jorge, até aos Altos Funcionários das ARS's e Hospitais:

  • A doente vinha de Faro para o Porto na noite de 30 de Dezembro de 2008 quando sentiu problemas no olho esquerdo e decidiu recorrer à urgência dos HUC (Hospitais da Universidade de Coimbra), que era a mais próxima. Foi-lhe ali diagnosticado um descolamento grave da retina, mas, por ser véspera de passagem de ano e os especialistas estarem de férias, disseram-lhe que para ser atendida no mesmo dia deveria recorrer a uma urgência de um hospital do Porto ou de Lisboa. Ela optou pela capital.
  • Chegou à urgência do Hospital de S. José (que pertence ao CHLC) às 2h50 e saiu dali duas horas mais tarde, depois de o médico interno que a observou lhe ter dito que não tinham oftalmologistas e se devia dirigir ao Hospital dos Capuchos (também do CHLC) para ser vista e operada. Levava um pedido de consulta externa muito urgente, mas teve de aguardar pela abertura, de manhã, do Hospital dos Capuchos, onde uma funcionária administrativa lhe terá dito que o médico não a poderia atender e só num privado seria operada de imediato. Sugeriram-lhe o Cuf Descobertas. Acabou por ser operada nesse hospital privado pelo médico que dirige o Serviço de Oftalmologia do CHLC.

Esta é uma imagem de um Estado Kafkiano, que está apoderado por um conjunto de interesses e interessados, que cinicamente enchem os discursos com os interesses dos doentes.

Veja-se o detalhe sinistro deste episódio surreal:

  • O director do Serviço de Oftalmologia do CHLC - que foi quem operou a doente na instituição privada - adiantou, porém, ao PÚBLICO que a administração já lhe pediu para apresentar um projecto para alterar a situação na unidade pública, de forma que casos como este não se repitam.
  • O médico garantiu ao PÚBLICO que não teve nada a ver com o facto de a doente ter ido ao hospital privado - "foi uma coincidência superdesagradável" - e sublinhou que a cirurgia do descolamento da retina não é feita nos serviços de urgência. "Não é uma intervenção de emergência, apesar de ser urgente", o que significa que pode ser feita vários dias depois, justificou. No hospital público, a doente teria de esperar por segunda-feira (era quarta-feira no dia seguinte era feriado e no outro havia tolerância de ponto) para ser observada e para depois lhe ser marcada a cirurgia.

Chegámos a uma situação, em que as pretensas élites da sociedade já se desresponsabilizam de tudo, sem nunca abdicarem, no entanto, das suas prebendas, sejam elas "tolerâncias de ponto", ou "promiscuidades público-privadas".

Estamos a chegar a um limiar de absoluta intolerância. Ao observarmos a História, verificamos que algo de muito perigoso está do outro lado da esquina.