- A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) intimou dois hospitais públicos a pagarem a meias uma operação a um descolamento da retina que uma doente fez no hospital privado Cuf Descobertas (Lisboa), depois de esta não ter sido atendida de imediato nas duas unidades, por ser véspera de fim-de-ano.
Isto é absolutamente inacreditável. Mas, o que a seguir registamos, é sinal de um completo estado de irresponsabilidade por parte de toda a estrutura do Ministério da Saúde, desde a pediatra Ana Jorge, até aos Altos Funcionários das ARS's e Hospitais:
- A doente vinha de Faro para o Porto na noite de 30 de Dezembro de 2008 quando sentiu problemas no olho esquerdo e decidiu recorrer à urgência dos HUC (Hospitais da Universidade de Coimbra), que era a mais próxima. Foi-lhe ali diagnosticado um descolamento grave da retina, mas, por ser véspera de passagem de ano e os especialistas estarem de férias, disseram-lhe que para ser atendida no mesmo dia deveria recorrer a uma urgência de um hospital do Porto ou de Lisboa. Ela optou pela capital.
- Chegou à urgência do Hospital de S. José (que pertence ao CHLC) às 2h50 e saiu dali duas horas mais tarde, depois de o médico interno que a observou lhe ter dito que não tinham oftalmologistas e se devia dirigir ao Hospital dos Capuchos (também do CHLC) para ser vista e operada. Levava um pedido de consulta externa muito urgente, mas teve de aguardar pela abertura, de manhã, do Hospital dos Capuchos, onde uma funcionária administrativa lhe terá dito que o médico não a poderia atender e só num privado seria operada de imediato. Sugeriram-lhe o Cuf Descobertas. Acabou por ser operada nesse hospital privado pelo médico que dirige o Serviço de Oftalmologia do CHLC.
Esta é uma imagem de um Estado Kafkiano, que está apoderado por um conjunto de interesses e interessados, que cinicamente enchem os discursos com os interesses dos doentes.
Veja-se o detalhe sinistro deste episódio surreal:
- O director do Serviço de Oftalmologia do CHLC - que foi quem operou a doente na instituição privada - adiantou, porém, ao PÚBLICO que a administração já lhe pediu para apresentar um projecto para alterar a situação na unidade pública, de forma que casos como este não se repitam.
- O médico garantiu ao PÚBLICO que não teve nada a ver com o facto de a doente ter ido ao hospital privado - "foi uma coincidência superdesagradável" - e sublinhou que a cirurgia do descolamento da retina não é feita nos serviços de urgência. "Não é uma intervenção de emergência, apesar de ser urgente", o que significa que pode ser feita vários dias depois, justificou. No hospital público, a doente teria de esperar por segunda-feira (era quarta-feira no dia seguinte era feriado e no outro havia tolerância de ponto) para ser observada e para depois lhe ser marcada a cirurgia.
Chegámos a uma situação, em que as pretensas élites da sociedade já se desresponsabilizam de tudo, sem nunca abdicarem, no entanto, das suas prebendas, sejam elas "tolerâncias de ponto", ou "promiscuidades público-privadas".
Estamos a chegar a um limiar de absoluta intolerância. Ao observarmos a História, verificamos que algo de muito perigoso está do outro lado da esquina.